
Artigo -Sobre a possibilidade jurídica de aceitação de documentos digitalizados pelas Centrais Eletrônicas. Por Maria Aparecida Bianchin Pacheco
26/03/2020 As medidas adotadas pelas autoridades sanitárias, pelo Conselho Nacional de Justiça e Corregedorias Estaduais em virtude do Covid-19, exigem profundas alterações no modo de operar dos serviços notariais e registrais, haja vista a suspensão do atendimento presencial e a recepção de títulos em vias físicas.Não obstante a maioria das unidades federativas contar com centrais eletrônicas para interligação dos usuários com os serviços registrais e oferecer a possibilidade de remessa de arquivos eletrônicos, o fato é que, além da constatação de que muitos cartórios ainda não estão preparados para receber e/ou enviar arquivos nesse formato, a assinatura eletrônica não é uma realidade presente para a maioria dos usuários.
No contexto atual, manter o afastamento social é medida salutar, mas também é necessário que busquemos alternativas para manutenção de nossas atividades na legislação posta e nos recursos já disponíveis, sem prejuízo de planejar estrategicamente ações para o futuro.
A Lei nº 6.015/73[1] sofreu alteração pela Medida Provisória 881/2019[2], posteriormente convertida na Lei nº 13.874/2019[3], acrescendo o parágrafo terceiro ao seu art. 1º, com o seguinte teor:
- 3º Os registros poderão ser escriturados, publicitados e conservados em meio eletrônico, obedecidos os padrões tecnológicos estabelecidos em regulamento.
Assim, a atual redação do mencionado artigo, assim dispõe:
Art. 1º Os serviços concernentes aos Registros Públicos, estabelecidos pela legislação civil para autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos, ficam sujeitos ao regime estabelecido nesta Lei. (Redação dada pela Lei nº 6.216, de 1975)
- 1º Os Registros referidos neste artigo são os seguintes: (Redação dada pela Lei nº 6.216, de 1975)
I – o registro civil de pessoas naturais; (Redação dada pela Lei nº 6.216, de 1975)
II – o registro civil de pessoas jurídicas; (Redação dada pela Lei nº 6.216, de 1975)
III – o registro de títulos e documentos; (Redação dada pela Lei nº 6.216, de 1975)
IV – o registro de imóveis. (Redação dada pela Lei nº 6.216, de 1975)
- 2º Os demais registros reger-se-ão por leis próprias. (Redação dada pela Lei nº 6.216, de 1975)
- 3º Os registros poderão ser escriturados, publicitados e conservados em meio eletrônico, obedecidos os padrões tecnológicos estabelecidos em regulamento. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
Ao prever a obediência aos padrões tecnológicos estabelecidos em regulamento, num primeiro momento poderíamos pensar que deverá ser editado regulamento próprio para esse parágrafo, porém na legislação relacionada aos padrões tecnológicos é possível deduzir que a regulamentação necessária para que os registros possam ser escriturados, publicados e conservados em meio eletrônico, já existem, independendo de regulamentação futura, como podemos ver nas considerações a seguir.
A Medida Provisória No 2.200-2/2001[4], instituiu a Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP-Brasil, para garantir a autenticidade, a integridade e a validade jurídica de documentos em forma eletrônica, das aplicações de suporte e das aplicações habilitadas que utilizem certificados digitais, bem como a realização de transações eletrônicas seguras.
A Lei 12.682/2012, dispõe sobre a elaboração e o arquivamento de documentos em meios eletromagnéticos, por meio da digitalização, o armazenamento em meio eletrônico, óptico ou equivalente e a reprodução de documentos públicos e privados, entendendo-se coo digitalização a conversão da fiel imagem de um documento para código digital. Esta sofreu recentes alterações no sentido de autorizar o armazenamento eletrônico de documentos públicos ou privados.
A Lei nº 13.874/2019, conhecida como Lei da Liberdade Econômica, instituiu a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, estabelecendo normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica e disposições sobre a atuação do Estado como agente normativo e regulador, prevendo expressamente a sua aplicação na interpretação do direito civil, e outros, inclusive, em matéria de registros públicos, ou seja, a interpretação deve dar-se em favor da liberdade econômica, da boa-fé e do respeito aos contratos, aos investimentos e à propriedade e outras atividades econômicas privadas.
Dentre os princípios que a norteiam, tem-se a liberdade como uma garantia no exercício de atividades econômicas, a boa-fé do particular perante o poder público, a intervenção subsidiária e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas, e o reconhecimento da vulnerabilidade do particular perante o Estado.
Além disso, assegurou vários direitos para toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, com gozo de presunção de boa-fé nos atos praticados no exercício da atividade econômica, e, arquivar qualquer documento por meio de microfilme ou por meio digital, nos seguintes termos:
Art. 3º São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal:
I – desenvolver atividade econômica de baixo risco, para a qual se valha exclusivamente de propriedade privada própria ou de terceiros consensuais, sem a necessidade de quaisquer atos públicos de liberação da atividade econômica;
II – desenvolver atividade econômica em qualquer horário ou dia da semana, inclusive feriados, sem que para isso esteja sujeita a cobranças ou encargos adicionais, observadas:
- a) as normas de proteção ao meio ambiente, incluídas as de repressão à poluição sonora e à perturbação do sossego público;
- b) as restrições advindas de contrato, de regulamento condominial ou de outro negócio jurídico, bem como as decorrentes das normas de direito real, incluídas as de direito de vizinhança; e
- c) a legislação trabalhista;
III – definir livremente, em mercados não regulados, o preço de produtos e de serviços como consequência de alterações da oferta e da demanda;
IV – receber tratamento isonômico de órgãos e de entidades da administração pública quanto ao exercício de atos de liberação da atividade econômica, hipótese em que o ato de liberação estará vinculado aos mesmos critérios de interpretação adotados em decisões administrativas análogas anteriores, observado o disposto em regulamento;
V – gozar de presunção de boa-fé nos atos praticados no exercício da atividade econômica, para os quais as dúvidas de interpretação do direito civil, empresarial, econômico e urbanístico serão resolvidas de forma a preservar a autonomia privada, exceto se houver expressa disposição legal em contrário;
VI – desenvolver, executar, operar ou comercializar novas modalidades de produtos e de serviços quando as normas infralegais se tornarem desatualizadas por força de desenvolvimento tecnológico consolidado internacionalmente, nos termos estabelecidos em regulamento, que disciplinará os requisitos para aferição da situação concreta, os procedimentos, o momento e as condições dos efeitos;
VII – (VETADO);
VIII – ter a garantia de que os negócios jurídicos empresariais paritários serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária ao avençado, exceto normas de ordem pública;
IX – ter a garantia de que, nas solicitações de atos públicos de liberação da atividade econômica que se sujeitam ao disposto nesta Lei, apresentados todos os elementos necessários à instrução do processo, o particular será cientificado expressa e imediatamente do prazo máximo estipulado para a análise de seu pedido e de que, transcorrido o prazo fixado, o silêncio da autoridade competente importará aprovação tácita para todos os efeitos, ressalvadas as hipóteses expressamente vedadas em lei;
X – arquivar qualquer documento por meio de microfilme ou por meio digital, conforme técnica e requisitos estabelecidos em regulamento, hipótese em que se equiparará a documento físico para todos os efeitos legais e para a comprovação de qualquer ato de direito público; (Regulamento) (negritei)
Dita lei ainda acresceu à Lei nº 12.682, de 9 de julho de 2012[5], o art. 2º-A:
“Art. 2º-A. Fica autorizado o armazenamento, em meio eletrônico, óptico ou equivalente, de documentos públicos ou privados, compostos por dados ou por imagens, observado o disposto nesta Lei, nas legislações específicas e no regulamento.
- 1º Após a digitalização, constatada a integridade do documento digital nos termos estabelecidos no regulamento, o original poderá ser destruído, ressalvados os documentos de valor histórico, cuja preservação observará o disposto na legislação específica.
- 2º O documento digital e a sua reprodução, em qualquer meio, realizada de acordo com o disposto nesta Lei e na legislação específica, terão o mesmo valor probatório do documento original, para todos os fins de direito, inclusive para atender ao poder fiscalizatório do Estado.
- 3º Decorridos os respectivos prazos de decadência ou de prescrição, os documentos armazenados em meio eletrônico, óptico ou equivalente poderão ser eliminados.
- 4º Os documentos digitalizados conforme o disposto neste artigo terão o mesmo efeito jurídico conferido aos documentos microfilmados, nos termos da Lei nº 5.433, de 8 de maio de 1968, e de regulamentação posterior.
(..)
- 7º É lícita a reprodução de documento digital, em papel ou em qualquer outro meio físico, que contiver mecanismo de verificação de integridade e autenticidade, na maneira e com a técnica definidas pelo mercado, e cabe ao particular o ônus de demonstrar integralmente a presença de tais requisitos.
- 8º Para a garantia de preservação da integridade, da autenticidade e da confidencialidade de documentos públicos será usada certificação digital no padrão da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil).”
E por fim, no tema que interessa nessas considerações, dispôs que:
Art. 18. A eficácia do disposto no inciso X do caput do art. 3º desta Lei fica condicionada à regulamentação em ato do Poder Executivo federal, observado que:
I – para documentos particulares, qualquer meio de comprovação da autoria, integridade e, se necessário, confidencialidade de documentos em forma eletrônica é válido, desde que escolhido de comum acordo pelas partes ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento; e
II – independentemente de aceitação, o processo de digitalização que empregar o uso da certificação no padrão da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil) terá garantia de integralidade, autenticidade e confidencialidade para documentos públicos e privados.
Pois bem, a regulamentação do inciso X do caput do art. 3º e do art. 18 da Lei nº 13.874, bem como, do art. 2º-A da Lei nº 12.682/2012, deu-se pelo Decreto n º 10.278, de 18 de março de 2020[6], que estabeleceu a técnica e os requisitos para a digitalização de documentos públicos ou privados, a fim de que os documentos digitalizados produzam os mesmos efeitos legais dos documentos originais, aplicando-se no âmbito dos documentos físicos digitalizados que sejam produzidos: I – por pessoas jurídicas de direito público interno, ainda que envolva relações com particulares; e II – por pessoas jurídicas de direito privado ou por pessoas naturais para comprovação perante: a) pessoas jurídicas de direito público interno; ou b) outras pessoas jurídicas de direito privado ou outras pessoas naturais, não se aplicando tão somente a documentos: nato-digitais, referentes às operações e transações realizadas no sistema financeiro nacional; documentos em microfilme; documentos audiovisuais; documentos de identificação; e documentos de porte obrigatório.
Importa ressaltar que mencionado decreto, estabeleceu conceitos aos vocábulos, de forma que não haja dubiedade no enquadramento dos documentos, da seguinte forma:
Art. 3º Para fins do disposto neste Decreto, considera-se:
I – documento digitalizado – representante digital do processo de digitalização do documento físico e seus metadados;
II – metadados – dados estruturados que permitem classificar, descrever e gerenciar documentos;
III – documento público – documentos produzidos ou recebidos por pessoas jurídicas de direito público interno ou por entidades privadas encarregadas da gestão de serviços públicos; e (negritei)
IV – integridade – estado dos documentos que não foram corrompidos ou alterados de forma não autorizada.
Estabeleceu ainda, as regras gerais da digitalização que envolvam entidades públicas e particulares:
Art. 4º Os procedimentos e as tecnologias utilizados na digitalização de documentos físicos devem assegurar:
I – a integridade e a confiabilidade do documento digitalizado;
II – a rastreabilidade e a auditabilidade dos procedimentos empregados;
III – o emprego dos padrões técnicos de digitalização para garantir a qualidade da imagem, da legibilidade e do uso do documento digitalizado;
IV – a confidencialidade, quando aplicável; e
V – a interoperabilidade entre sistemas informatizados.
Art. 5º O documento digitalizado destinado a se equiparar a documento físico para todos os efeitos legais e para a comprovação de qualquer ato perante pessoa jurídica de direito público interno deverá:
I – ser assinado digitalmente com certificação digital no padrão da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP-Brasil, de modo a garantir a autoria da digitalização e a integridade do documento e de seus metadados;
II – seguir os padrões técnicos mínimos previstos no Anexo I; e
III – conter, no mínimo, os metadados especificados no Anexo II.
Art. 6º Na hipótese de documento que envolva relações entre particulares, qualquer meio de comprovação da autoria, da integridade e, se necessário, da confidencialidade de documentos digitalizados será válido, desde que escolhido de comum acordo pelas partes ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento.
Parágrafo único. Na hipótese não ter havido acordo prévio entre as partes, aplica-se o disposto no art. 5º.
Por fim, estabeleceu a responsabilidade pela digitalização, normas para descarte dos documentos físicos e a manutenção dos documentos digitalizados, a saber:
Art. 8º O processo de digitalização poderá ser realizado pelo possuidor do documento físico ou por terceiros.
- 1º Cabe ao possuidor do documento físico a responsabilidade perante terceiros pela conformidade do processo de digitalização ao disposto neste Decreto.
- 2º Na hipótese de contratação de terceiros pela administração pública federal, o instrumento contratual preverá:
I – a responsabilidade integral do contratado perante a administração pública federal e a responsabilidade solidária e ilimitada em relação ao terceiro prejudicado por culpa ou dolo; e
II – os requisitos de segurança da informação e de proteção de dados, nos termos da legislação vigente.
Art. 9º Após o processo de digitalização realizado conforme este Decreto, o documento físico poderá ser descartado, ressalvado aquele que apresente conteúdo de valor histórico.
Art. 10. O armazenamento de documentos digitalizados assegurará:
I – a proteção do documento digitalizado contra alteração, destruição e, quando cabível, contra o acesso e a reprodução não autorizados; e
II – a indexação de metadados que possibilitem:
- a) a localização e o gerenciamento do documento digitalizado; e
- b) a conferência do processo de digitalização adotado.
Art. 11. Os documentos digitalizados sem valor histórico serão preservados, no mínimo, até o transcurso dos prazos de prescrição ou decadência dos direitos a que se referem.
Considerando que a legislação acima mencionada prevê expressamente a aplicação no âmbito dos registros públicos, que notários e registradores são desempenham atividade privada de gestão de serviços públicos; e que o processo de digitalização de documentos físicos originais poderá ser realizado pelo possuidor do documento físico ou por terceiros, cabendo-lhes a responsabilidade perante terceiros pela conformidade do processo de digitalização, se justifica a adoção imediata no atual contexto, mediante declaração de responsabilização pelo apresentante do documento digitalizado nas centrais eletrônicas.
Inclusive, forçoso o entendimento nesse sentido, pois na própria Lei nº 12.682/2012 há previsão expressa de que o documento digital tem o mesmo valor probatório, para todos os fins de direito, do documento original (art. 2º-A, § 2º) até mesmo autorizando a sua destruição após constatada a integridade digital (art. 2º-A, §1º).
Tal medida contribuiria para a contenção do Covid-19, haja vista que não existiria contato físico entre usuários e atendentes do cartório, sem prejuízo de posteriormente continuar a ser utilizado o mesmo procedimento, aperfeiçoando-o ou substituindo-o por outras possibilidades.
Nesse sentido se coadunam as orientações emanadas das Corregedorias Gerais da Justiça, ao estabelecerem que a regra é ficar em casa, em prol da saúde pública, prestando-se todos os serviços à distância e por meio eletrônico disponível.
E se você fez a leitura até aqui, como resposta à indagação que provavelmente persiste desde o início da leitura, eis o recente julgado do TJMG (AC Nº 1.0155.18.000447-7/001):
“…Há que se considerar que também nunca foi perfeita a assinatura física: pode ser lavada ou falsificada; seu instrumento pode ser perdido, alterado ou destruído. É de se dizer, o contrato físico e assinado em tinta não é a rainha das provas. Exigir assinatura física quando presentes outros meios legítimos e seguros de atestar autoria, ciência e manifestação de vontade é antiquado e desnecessário.”
[1] LEI Nº 6.015, DE 31 DE DEZEMBRO DE 1973. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L6015compilada.htm
[2] Medida Provisória 881/2019 – http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Mpv/mpv881impressao.htm
[3] Lei nº 13.874/2019 – http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13874.htm
[4]Medida Provisória No 2.200-2/2001 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/mpv/antigas_2001/2200-2.htm
[5] Lei nº 12.682, de 9 de julho de 2012 – http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Lei/L12682.htm
[6] Decreto n º 10.278, de 18 de março de 2020 – http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Decreto/D10278.htm